quinta-feira, 29 de abril de 2010

O bairro Santa Cruz e o Complexo de Complexo




No início do mês fui surpreendido ao passar em frente a uma banca de jornais com uma matéria estampada na capa de um periódico local, que alertava os leitores para uma operação iniciada pela polícia militar para ocupar “o Complexo Santa Cruz”. A operação, chamada “apocalipse”, apelava para uma alegoria bíblica, talvez na tentativa de gerar um clima de terror psicológico na cabeça dos supostos meliantes perseguidos pela lei, ou talvez, por aquele hábito estranho das corporações militares de darem nomes dessa natureza às suas ações e planos extraordinários (coisas como Operação Trovão, Dinamite, Tempestade, Águia Branca, Jibóia Parda, etc), quando não inspirados em verdadeiros jargões quase hollywoodianos que expressem força, violência, rigor, ousadia, etc.

Algumas semanas depois, ao assistir um programa de TV local, passei por uma entrevista do comandante dessa operação, de quem já não me recordo o nome, e explicava alguma coisa ou outra sobre a importância dessas operações, especialmente nas chamadas “zonas quentes de criminalidade”. Sua opinão não ia além da fórmula mais tradicional e conservadora de se pensar a segurança pública, compondo uma equação associando os seguintes fenômenos: consumo e venda de drogas, marginalidade, delito e violência urbana. Fato que, em geral, não se pode esperar muito da polícia militar, pois lamentavelmente, essa corporação foi criada como braço da repressivo do Estado para manter a ordem pública. A questão é que, dificilmente, talvez com exceção de alguns policiais envolvidos com a Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares (ASPRA), o significado concreto de ordem pública nunca tenha sido questionado ou discutido para além daquilo que pensa o oficialato, geralmente em cargos ocupados por militares graduados e próximos aos governadores, a quem se vincula institucionalmente a PM.

Dentro das ciências sociais, especialmente entre aqueles pesquisadores que trabalham em núcleos interdisciplinares de estudos sobre a violência urbana, nos últimos dez anos ocorreu um poderoso trabalho de revisão de uma antiga tese que associava pobreza/marginalidade e violência. Esse trabalho de revisão, em grande parte financiado por instituições como a Fundação Ford e órgãos de pesquisa internacionais, estavam interessados em despolitizar o campo de estudos da violência urbana, na tentativa de identificar outros fatores que pudessem explicar, e até mesmo, determinar, a explosão de criminalidade existente nos grandes centros urbanos. O curioso é que, mesmo sendo vitoriosos, pois muitos desses estudiosos hoje se converteram em verdadeiros assessores das agências de segurança pública do Estado, a tese continua sendo débil. Isso porque os principais “territórios da criminalidade”, as “zonas quentes”, curiosamente, continuam sendo as periferias, ou seja, os “territórios da pobreza”.

Mas territórios da pobreza não são apenas aqueles espaços onde os pobres se aglomeram para construir seus barracões e viver com sua penca de filhos. Não. Os territórios da pobreza são espaços com precário ou inexistente acesso aos serviços públicos mais elementares, são espaços segregados social e culturalmente, a partir de onde se erige um imaginário específico que converte seus moradores em sub-cidadãos, em seres esteticamente e moralmente inferiores. Por serem segregados, são espaços que devem ser evitados pela “gente de bem”, e de onde se recruta toda aquela espécie de mão de obra que não merece a dignidade de uma remuneração honesta para os trabalhos essenciais para a vida da “gente de bem”: são as empregadas domésticas, os boys e cobradores do comércio, vigias, porteiros, limpadores de carro e outros tipos serviçais.

E agora que o bairro Santa Cruz virou complexo (de onde veio esse batismo? Dos moradores, da PM, da prefeitura?), ainda que me venham com qualquer justificativa do tipo geodemográfica (ah, porque hoje são vários bairros que cresceram ali dentro!), isso não me cheira nada mais que um ato simbólico de estigmatização daquele território que oferece a maior parte da mão de obra mais explorada (que coincidentemente também é negra!) dessa cidade. Em suma, isso é um insulto, e dos graves. E creio que não somente os moradores do bairro, mas o conjunto dos cidadãos do município deveriam repudiar com veemência tal tipo de denominação.
Aliás, quem sabe assim não poderíamos criar uma oportunidade histórica para que na cidade, e em especial, com a comunidade do Santa Cruz, se realize um verdadeiro debate público sobre qual modelo de segurança pública desejamos, e não essas fantasias separatistas de momento, e de que forma poderíamos atuar para concretizá-la, e transformar os camburões da polícia em algo além dessas versões modernas de “navios negreiros”, fazendo coro com a acertada poesia musical de “O Rappa”.



[ARTIGO CENSURADO PELO DIÁRIO DE CARATINGA, ABRIL DE 2010)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Quem tem medo da reforma agrária?






Qualquer pessoa que tenha a oportunidade de viajar por países da América Latina, ou mesmo da Europa, com a finalidade de participar de fóruns e debates políticos internacionais, especialmente entre intelectuais e forças sociais progressistas, logo, preocupados com uma agenda de transformação social e com a construção de um mundo onde a vida humana seja medida não pelo seu suposto valor mercantil (como força de trabalho ou mão de obra), mas pela dignidade que lhe é radicalmente inerente, ouvirá que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, é um dos mais importantes e mais bem organizados movimentos sociais do mundo.

Engraçado que a imagem do MST dentro do Brasil, justamente pelo papel nefasto desempenhado pelos meios de comunicação corporativos-comerciais, que mais que informar, desinformam e deformam, é de que ele se constitui basicamente em um grupo de vândalos, criminosos e delinquentes que “invadem” a terra de honrados e ilibados proprietários e produtores rurais (e a equação é fácil de fechar: se os meios de comunicação de massa são oligopólios comerciais, são financiados por empresas ou grupos privados, logo, a insustentabilidade da falácia sobre a “imparcialidade” de quase tudo que se publica sob o nome de jornalismo nesse país).

O fato é que não é necessário ser socialista ou revolucionário para defender e entender a importância da reforma agrária. Os EUA, por exemplo, a grande meca do mundo capitalista liberal contemporâneo, só se tornou o que é hoje porque, ao vencer a guerra de independência contra os ingleses, realizou um importante processo de reparto agrário. Todos os países importantes do capitalismo contemporâneo, como Alemanha e Japão, fizeram o mesmo. E mesmo países considerados mais pobres que o Brasil, do México à Bolívia, realizaram também suas reformas no campo.

Mas a herança brasileira é de outro corte. Viemos de uma monarquia escravocrata que desenvolveu um processo de ocupação territorial baseado nos laços de irmandade entre as elites lusitana e brasileira, e onde a concentração de terras, baseada na manutenção de um regime de trabalho forçado, primeiramente, e depois em um modelo quase servil de semi-assalariamente com a absorção de mão de obra imigrante (no auge das teses sobre a necessidade de “branqueamento” do país), voltado para o monocultivo agro-exportador, sempre predominou. O resultado é lógico. Muita gente “desocupada”, baixa produção de alimentos, lucros exorbitantes para os produtores e suas famílias que monopolizavam grandes faixas de terra (doadas ou roubadas do erário público, aclaremos). Sem um mercado interno desenvolvido, a fome e outras privações se alastraram como uma epidemia entre a maioria da população desse país, enquanto uma elite pequena e cosmopolita financiava com a exportação de café, borracha, açúcar ou seus posteriores correspondentes, a importação de todo tipo de luxo e modismo da indústria europeia e estadunidense.

Se algum curioso um dia resolver se perguntar porque as favelas se converteram em um fenômeno tão absurdo no Brasil, e porque a maioria da massa humana depositada nos presídios é formada essencialmente por gente jovem e negra, talvez chegue a associar com algum resquício de inteligência, nesses tempos difíceis de domínio de uma educação bovina televisiva, que a escravidão negra, o extermínio das populações indígenas, a exploração de gerações de imigrantes e a existência da grande propriedade rural em nosso país, tenha alguma coisa em comum.

Quem sabe? Aí em algum momento esse mesmo curioso resolva buscar informações sobre as origens de lutas populares como aquelas levadas pelo MST (que está longe de ser o único movimento no Brasil que reinvindica a chamada “justiça social”) para além do que se diz dele no Jornal Nacional ou na revista Veja, essas duas torres gêmeas da estupidificação da opinião pública brasileira. E entenda que quando as pessoas, em situação de urgência e drama social, e quando as instituições políticas são morosas ou mesmo um obstáculo para o avanço das demandas dos pobres e de todos os subordinados política e economicamente, são levadas a buscar estratégias de mobilização e de pressão mais ousadas, como no caso das “ocupações”, agem com toda a legitimidade moral, pois são movidas não pela busca de enriquecimento pessoal, mas pela necessidade de correção de equivocadas opções históricas pagas com o sangue de gerações de trabalhadores e toda sorte de gente humilde.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Da ignorancia popular e outras ignorancias





Não é necessário ser um especialista em política para entender que em linguagem corrente e popular, conceitos e categorias forjados à luz da sofisticação ideológica e teórica têm peso quase nulo. O que não significa assinar o atestado de ignorância do povo, mas bem o contrário: assinalar o grau de hermetismo muitas vezes assumido sem ressalvas ou cuidados pela academia e os intelectuais. Por outro lado, isso tão pouco significa que o debate popular é vazio e sem densidade, simplesmente por não utilizar, digamos, a gramática sancionada pelos intelectuais, sem prejuízo da presumida potencialidade da mesma.

Uma consequente antropologia do pensamento popular poderia nos dar mostras da profundidade e extensão de muitas concepções e visões de mundo presentes no meio popular, que justamente por ser anti-sistemática e não possuir um certo tipo de vocalização sacerdotal (ou seja, intelectuais promotores), se manifestam sem o tom lumininoso da legitimidade social. Um tipo de trabalho excepcional sobre o tema foi desenvolvido ao longo dos anos 1950 pelo argentino Rodolfo Kusch, e no Brasil pensadores como Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro chegaram a abrir veredas para a produção do que poderíamos chamar de uma verdadeira filosofia popular e descolonizada.

Claro que, em função das mais diversas dinâmicas de estratificação social e econômica que organizaram as mais distintas formas de sociedades conhecidas, culminando em uma tensão interna a praticamente quase todo tipo de vida social que passou a ser nomeado no Ocidente como “antagonismo de classe”, a produção social, econômica, e mais especialmente, cultural de uma época nunca foi homogênea ou representativa da totalidade do corpo social, sendo, na realidade, definida de forma mais ou menos grosseira, mas não menos verdadeira, pelas configurações históricas particulares da correlação “elite-povo”.

Quando remeto a configuração elite-povo basicamente quero indicar duas coisas: primeiro, a existência de um determinado grupo social que devido a certas vantagens/privilégios político-econômicos se apropria do excedente econômico (riqueza) produzido coletivamente. Segundo, a existência de um corpo político separado da sociedade que exerce delegativamente as prerrogativas da soberania popular, e por isso, se estabelece como autoridade política, ou melhor, “profissionais do poder”. A partir das consequências dessas divisões fundamentais, se manifesta essa divisão empírica e conhecida por nós entre elite e povo.
Os intelectuais e os artistas, como um grupo social distinto no interior dessa polarização social, como teria dito certa vez o sociólogo Pierre Bourdieu, estaria representado como “a fração dominada da classe dominante”. O que quer dizer isso? Que a eles cabe realizar a sistematização conceitual e conferir a legitimidade simbólica aos sistemas de pensamentos/valores vigentes como universais, quando na realidade, não passam da universalização de interesses particulares e específicos de setores dos grupos dominantes.

Um exemplo, aproveitando para fazer conexão com um artigo anteriormente publicado nessas páginas. O consumo de automóveis privados. A quem interesse a compra desses artefatos automotivos para uso privado? É possível que todos tenhamos nosso próprio automóvel na garagem, ou que realizemos num mesmo dia e horário um belo passeio de domingo pela praça da cidade? Não. Em oportunidade passada argumentei sobre os perigos sociais e ambientais do consumo de massas dos automóveis privados. E da necessidade de investimento público em formas alternativas e coletivas de transportes. Porque sim, doa a quem doer, o consumo de automóveis privados, convertidos em máximas de liberdade pós-moderna, em suposto fator de conforto e agilidade, interessa às grandes multinacionais que produzem isso a um custo social e ecológico absurdo. E se hoje lotamos as ruas da cidade com eles, é porque existe todo um séquito de lobbistas entre o planalto e o congresso pressionando por mais incentivos fiscais e flexibilização da legislação trabalhista.

Mas o espaço aqui lamentavelmente é curto para desenvolver mais essas idéias. Portanto retomo o fio central desse texto, a tão difundida noção de que o povo é ignorante, seja porque é iletrado, analfabeto, ou mais simplesmente, porque é pobre e pouco urbanizado. Assim, a defesa imediata de uma política massiva de educação da plebe aparece como a mais resoluta das panacéias, defendidas por toda ordem de tecnocratas de plantão (a “elite”, da esquerda à direita). A educação sim, é necessária, mas desarticulada da criação de espaços de participação onde o povo possa criar livremente novas modalidades de produção econômica (para poder trabalhar para si, e não se alienar para outro), e sem sua inserção concreta na vida política, através de mecanismos onde ele possa definir aquelas regras coletivas sobre as quais ele nunca foi mais do que estatística para sofrê-las, será sempre meramente incipiente e cosmética.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Apocalipse Motorizado




Já dizia o ilustre (e esquecido?) escritor Paulo Mendes Campos que viver é “falar de corda em casa de enforcado”... Em parte concordando com a assertiva (porque me convenci de que concordar em partes é uma meia virtude dos mineiros), quero aproveitar esse espaço para desenvolver uma opinião provavelmente polêmica (como outras que os estimados leitores certamente encontrarão nessa coluna), e sem medo de pisar em ovos, ou já prevendo o omelete.

Que o avanço tecnológico é uma expressão da inventividade e da capacidade humana de resolver problemas práticos e tornar a vida melhor e menos sofrível, há muito tempo já tomamos como um truísmo. Celulares, máquinas de lavar, microcomputadores, fornos microondas, televisores de plasma, automóveis, etc. A lista é quase infinita desses maravilhosos... como se chamam mesmo? “Bens de consumo duráveis”! Exatamente, esses apetrechos que “vieram ao mundo” para facilitar e potencializar as mais diversas atividades humanas, poupando trabalho, esforço e até mesmo oferecendo alguma modalidade de alegria e alívio para aqueles corpos cansados e saturados que se despejam nos acolchoados e confortáveis sofás de sala televisiva nas tediosas tardes de domingo.

Por que não mencionar o quão relaxante deve ser por as mãos (e espera-se também que o resto do corpo, para que eu não seja tomado por esquartejador) naquele apreciado automóvel de estimação, comprado com tanto suor e economia, dividido em não sei quantas mil prestações, penhorando aquele velho anelzinho da vovó, ou pegando uma modesta grana emprestada com o simpático sogro (afinal, está ali aquele dinheiro guardado, sem uso, por que não tomá-lo para alguma coisa que nos vá trazer imediata satisfação?), enfim, operando os mais diversos malabarismos financeiros, e sair triunfante da garagem com o tão desejável veículo automotivo sobre quatro rodas, dando um belo passeio de domingo pelas ruas de Caratinga. E se o veículo possuir equipamento de som de admirável potência, então, imagina só, a alegria itinerante contagiando as ruas, oferecendo a cada transeunte e vizinho uma mostra do nosso apuradíssimo gosto musical, além de demonstrar publicamente nosso transbordante espírito solidário ao compartilhar com todos um pouquinho, ainda que de passagem, daquilo que nos é tão íntimo: a nossa música preferida! O que haveria de errado nisso?

Aparentemente nada. Em uma virtual sociedade de indivíduos-monarcas, onde cada um é absoluto senhor de si e do mundo ao seu redor, não há nada de errado. Mas pensemos um pouco. Só um pouco, se não for pedir demais nos tempos de hoje. Nessa cidade de aproximadamente 90 mil habitantes... retomemos a citada imagem da bela e entediante tarde de domingo, como aquelas vivenciadas pela maioria daqueles que trabalham e/ou estudam conduzidos pela rotina (outro desses nomes supostamente “neutros” para não dizer coação econômica) onde TODOS os seus moradores, supostamente beneficiados pela queda da taxa de juros, pelo aumento do nível de emprego, pelas facilidades de crédito na praça, pelo barateamento dos bens de consumo duráveis promovido por uma exitosa economia industrial de escala, etc, etc, imaginemos que TODOS eles resolvam fazer seu passeio de domingo nessa mesma tarde, assim, digamos, depois do almoço, e de preferência nos felicitando mui alegremente com uma pequena amostra ambulante das suas mais recentes aquisições musicais.

Parece brincadeira, certo? Alguns chamam de “probabilidade”, outros de “conjectura”, mas pouco importa o nome. O fato é que isso é muito, muito sério. Tudo bem, alguns podem me censurar pela caricatura, e então posso confessar que pequei pelo exagero. Esqueçam esse papo de “TODOS eles”. Pensem só em 10%, só em 10 mil veículos circulando nessa tarde imaginária de domingo...

Até agora, talvez para alguns, talvez para muitos, isso pode beirar a mera reclamação de gente velha, coisa de “gente idosa”, incapaz de se adaptar às dinâmicas dos novos tempos, e aceitar as experimentações da juventude. No entanto não posso deixar de perguntar: e quais são as experimentações de uma certa juventude caratinguense, para além dos desfiles automotivos de domingo, geralmente uma metamorfose dos jogos masculinos de sedução, da esquizofrenia do complexo de pavão?

Podemos apontar que essa não é uma característica isolada de Caratinga, mas sim de muitas cidades do interior do país que estão vivendo um período de “complexificação dos padrões de consumo de classe média”, derivado, entre outras coisas, do processo de estabilização econômica. Claro que as opções de consumo são necessariamente “estimuladas” pela ação ininterrupta dos escritórios de propaganda e marketing dos generais e bispos da indústria automobilística, principais responsáveis pela conversão do automóvel em um objeto de culto social, um verdadeiro fetiche contemporâneo, e em nossa cultura interiorana, lamentavelmente associado aos rituais de passagem para a maioridade.

Se a crítica cultural parecer insuficiente aos olhos de muitos dos atuais amantes dos motores, na crista da onda do argumento de que “gosto não se discute”, e se um gosta de andar a pé, outro de bicicleta, e outro de carro, logo “cada macaco no seu galho” e estamos conversados, gostaria de trazer argumentos de outra natureza.

Indago: qual o custo de produção de um automóvel? E não me refiro ao cálculo econômico ingênuo que vai buscá-lo em insumos, força de trabalho, etc. Pois nessa dimensão abstrata duas coisas estão fatalmente ocultas: a exploração do homem e a exploração da natureza.

A cadeia de produção de um automóvel está globalmente articulada, e implicada num grau elevado de interdependência de conhecimentos, trabalho e matérias-primas oriundas de várias partes do mundo. Beabá da globalização. Porém, eis o lado oculto da lua que não se mostra: nessa rede de interdependências estão incluídos desde o papel das miseráveis crianças do Zimbabué, da Bolívia ou... do Brasil, que “auxiliam” seus famélicos pais na extração de minérios em campos e montanhas convertidos em verdadeiras catacumbas, ao conjunto de guerras entre nações pelo controle geopolítico de fontes de energias não renováveis, como o petróleo, até a construção neokeynesiana de estradas como política pública de um país para promover o “rodoviarismo” (ou seja, o consumo em massas de automóveis), em detrimento da promoção de certas potencialidades naturais para o desenvolvimento de meios de transportes públicos, coletivos e sustentáveis. Uma lista rigorosa desse verdadeiro (e invisível) inventário dos custos de produção de um automóvel se perderia de vista se prosseguíssemos, e certamente geraria naqueles espíritos mais sensíveis uma estranha repugnância ao conduzir um carro novamente.

Contudo não é esse o meu o objetivo, pelo menos em parte. Estamos saturados em ouvir falar de aquecimento global e catástrofes ecológicas de toda sorte. Só hesitamos em fazer a conexão entre essas catástrofes que, não nos iludamos, está sim no horizonte, e nossos modos de vida, ou o que é o mesmo, mas em outra dimensão: a nossa própria matriz civilizacional capitalista. E não tenham dúvidas. Nosso modelo de transportes baseado no uso individual do automóvel é sim nefasto para as cidades, para os trabalhadores (especialmente aqueles inseridos nas esferas “invisíveis” que citei) e para o meio ambiente. É uma forma sutil e irresponsável de praticar um verdadeiro suicídio coletivo (na medida em que somos cúmplices) ou assassinato generalizado (no caso da maioria da população do planeta que não pode consumir esse tipo de bem).

Sinceramente, não vejo uma solução fácil e imediata para esse problema, e isso é terrível. As pessoas não parecem interessadas em abandonar esse modelo privatista de transporte, as empresas jamais abrirão mão de seus lucros, e os governos e os partidos são insensíveis para tudo aquilo que coloque em risco o “crescimento” das grandes empresas que os patrocinam. A tragédia é que, se não encontrarmos em breve uma solução coletiva para o problema do automóvel, não é só os engarrafamentos e o duvidoso gosto musical dos motoristas mais exibidos que teremos que suportar, mas progressivamente, o surgimento de impedimentos irreversíveis para continuidade da própria vida (e não somente humana) em nosso planeta. Aí já não poderemos falar mais nem em corda, nem em casa, nem em forca...

Reflexões Natalinas





Incrível. Caratinga é uma cidade que sempre me surpreende. Toda vez que desço da rodoviária e sigo minha caminhada noturna rumo ao mais próximo do que posso chamar de casa (ou seja, a casa de um amigo) vejo, ouço ou simplesmente farejo algo que me espanta. Aliás, esse espantar-se, segundo alguns doutos da filosofia, estaria na raiz do que se poderia considerar “o pensamento reflexivo” ou “crítico” ou “transcendental” ou ... ou alguma outra coisa do gênero. Pouco importa. O que me interessa agora é compartilhar com os leitores meu último estado de espanto: a decoração natalina espalhada pela cidade, ou mais particularmente, pela praça das palmeiras e o calçadão do poder (sim, ali onde estão alocadas algumas secretárias da prefeitura municipal).

Vocês obviamente podem (e devem!) me questionar: afinal, o que esse camarada estúpido tem contra a celebração do natal? Essa data tão maravilhosa, quando todos se colocam mais amáveis no cotidiano, onde famílias que durante os 354 dias do ano não ou mal se falam, prontamente demontram aquele afetuoso abraço e toda aquelas saudações amorosas e melosas que antecedem a celebração da ceia e a abertura dos presentes em torno da... lareira? Obs... não, não estamos nos EUA ou na Dinamarca, não dá pra ter lareiras por aqui, verdade? Bem, esqueçam as lareiras. Mas sim, tem aquele sujeito adiposo de bochechas rosadas, vestido de vermelho com coisas brancas de pele de algum pobre animal ártico (sim, porque o bicho vem do norte!) em volta do pescoço, dos braços e das cintura (cadê o Greenpeace?!), carregando um saco enorme com um montão de buginganças de última geração da indústria micro-eletrônica chinesa, e distribui generosamente suas dádivas ao redor de um pinheiro enfeitado com estrelas e bolas luminosas (árvore essa, aliás, muito comum por nossas terras, né...) para que todos possam regojizar-se de felicidade! Só mesmo louco para colocar-se contra um espírito de tão inacusável altruísmo como esse tal do Sr. Noel... Só louco mesmo.

Então deixemos o Sr. Noel em paz, para que todos aqueles que se divirtam com sua presença possam se festejar e disfrutar tão importante data. Não preciso lembrar para ninguém que o Natal continua não sendo mais que uma data comercial, celebrada com especial furor pelo departamento de marketing de qualquer empresa que se preze e espera um substantivo aumento de seu faturamento nessa data do ano. Não preciso lembrar do apelo consumista, dos falseamentos em torno dos sentimentos de amor, amizade, paz, etc, tudo em prol das dinâmicas do mercado capitalista. Nem preciso lembrar também que esse duende (sim, o Sr. Noel é um duende, o chefe deles, mas um duente, alguém ainda duvida?) se originou em uma parte muito específica do mundo, foi apropriado por uma grande empresa de refrigerantes (nada contra a coca-cola, eu ainda recomendo aquela garrafinha de vidro, de 290 ml, bem gelada! É quase mágica!), e depois vendido como ícone comercial por boa parte do mundo colonizado cultural e economicamente, atropelando, massacrando e estimulando o processo de esquecimento de muitas tradições populares de países como o nosso (alguém ainda se lembra do maior dos nossos “duendes”, o Saci?). A fórmula é simples: cria-se uma indústria da propaganda e do cinema, elabora-se figuras e ícones associados a essa indústria, transforme-os em ícones de apelo universal e bingo! O Sr. Noel e tantos outros, se trasformam em verdadeiros patrimônios da humanidade, obviamente de uma única humanidade, a deles, a do Império. No entanto já disse, não vou lembrar vocês dessas coisas, pois os senhores e as senhoras já são suficientemente crescidinhos para desconfiarem dessas coisas...

Também não vou me estender na dimensão religiosa da festividade, legítima para todos os que se consideram cristãos. Só assinalo o aspecto mais curioso dela: Cristo nasceu numa manjedoura, no meio de cavalos, jegues e vacas com seus respectivos punhados de carrapatos e todo aquele fedor de esterco. Se existe algo que a instituição igreja esqueceu, assim como os católicos romanos, foi a valiosa dimensão de simplicidade que o natal deveria remeter...

E retomo o tom do meu espanto, espanto que me tocou ao descer da rodoviária e ver as palmeiras dessa cidade, essas grandes e imponentes palmeiras que muitos defendem como um verdadeiro símbolo pátrio municipal, vergonhosamente encapadas, como se estivessem semi-revestidas com um preservativo de mau gosto, para fazer jus a essa harmoniosa sincronia natalina. Mas o pior não foi isso, vê-las violadas naquilo que elas ainda pudessem conservar de sua dignidade arbórea e vegetal. Não. O pior é saber que essa brincadeira foi maquinada e planejada de um lugar onde supostamente se crê, as pessoas não deveriam estar de brincadeira: a prefeitura municipal de Caratinga.

Num período tão particular como o nosso, onde geralmente os meios de comunicação (jornais, televisão, rádio) ou se posicionam favorável ou contra as medidas do poder público na medida em que são contemplados ou não com recursos e vantagens desse mesmo poder, fica complicado encontrar algum raio de opinião crítica, até mesmo da parte de quem apoia governos supostamente auto-identificados como populares ou de esquerda. Portanto nomeio esse meu boi, para que vocês possam me entender: não apoio nem tenho interesse em apoiar nenhum tipo de governo ou partido. Minha preocupação é apoiar ou estar junto com pessoas interessadas em “ativar a esfera pública” (parece até nome de arma high-tech de seriado japonês) e tornar qualquer espécie de governo (que por si só são nefastos, porque sempre onde existe governo, existe quem é governado) em auto-governo, ou seja, em governo controlado pelos cidadãos e suas associações cívicas e comunitárias. Porque o governo deveria ser aquele organismo da sociedade que “serve” ao povo ou aos cidadãos. Nada mais que funcionários, empregados do povo, e não nenhum diabo de autoridade que se pensa e se crê acima da população como instância especial para definir o que é certo ou errado, o que é normal ou desviante. Um grupo de indígenas no sul do México criaram um ditado para isso: que aqueles que mandem, “mandem obedecendo”. Isso sim é democracia, poder popular, o resto, oligarquia burocratizada que governa segundo seus próprios interesses, travestido daquilo que supõe ser o interesse popular. E o pior é que nesse mundo confuso, de tantas referências perdidas ou derrotadas, tem um montão de gente por aí posando de esquerda e progressista...

Caros cidadãos e cidadãs dessa pacata e nem tão inocente cidade: alguém em algum momento foi consultado sobre essa ornamentação natalina? Alguém sabe quanto foi gasto com isso, do orçamento público? Isso sim é o mais espantoso, numa cidade cheia de problemas e prioridades... O próprio jardim das palmeiras mesmo, que foi recentemente vítima de uma atitude ecocida por parte de um antigo secretário que, talvez acordando entediado em uma dessas entediadas e remelosas manhãs que configuram sua vida, arbitrariamente decidiu cortar algumas árvores sem muita importância, como quem corta grama... Lamentavelmente tal secretário, como me imagino, até muita gente que está dentro da prefeitura, não deve ter nem idéia de que “cortar grama” é uma verdadeira ciência, que seu executor, o tal do jardineiro, quando é bom, tem não só conhecimento de causa, mas sensibilidade suficiente para, partindo das próprias condições particulares de um terreno e do ecossistema ao redor, criar verdadeiras obras de arte. Porque então esse dinheiro não foi usado para isso, capacitar os jardineiros para transformar nossa praça em um maravilhoso e babilônico jardim modelo? Até mais, se em lugar dessa ornamentação descartável (sim, porque é para o lixo que toda essa parafernália deve ir, passado o natal...), era preferível até fazer sopa e distribuir aos pobres nessas noites frias e chuvosas.

Mas nossos gestores não tem nem essa sensibilidade espírita da caridade, nem são consequentes democratas, ainda que tragam consigo todo esse lenga-lenga da participação que nasceu junto com o PT (e não com ele, atenção!), e que claramente se perdeu na lógica instrumental e imediatista das dinâmicas do poder e do calendário eleitoral. Superfaturam notas de compra de terrenos, censuram filmes locais, cortam árvores que estão no meio do caminho (porque se fossem pedras, teriam que chamar o Drummond para resolver), etc, etc. E vão continuar fazendo essas coisas, à esquerda ou à direita, se a população de Caratinga não reivindicar aquilo que é dela e que é exercido em seu nome: o poder político.

Infelizmente (e para a insônia dos tecnocratas) democracia só se aprende fazendo, praticando democracia. Não tem cartilha. Ou o povo participa e toma assento nas decisões e nos processos de fiscalização das decisões, ou vira gado. E para gado, já tem um montão de boiadeiros e cowboys aí fora esperando para montar.

Há um outro ditado, escrito nas paredes dos banheiros de rodoviária de Buenos Aires, Argentina, que especula algo mais ou menos assim: “uma torta é boa quando feita de farinha bem batida e amassada”... Será que nos falta um um pouco dessa sabedoria culinária para criarmos uma nova cultura política, democrática de fato? Quem sabe... Enquanto isso, nos pagamos a conta e os ingredientes e ficamos aqui, atrás das urnas, observando os políticos se lambuzarem com a nossa torta...

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