terça-feira, 13 de abril de 2010

Apocalipse Motorizado




Já dizia o ilustre (e esquecido?) escritor Paulo Mendes Campos que viver é “falar de corda em casa de enforcado”... Em parte concordando com a assertiva (porque me convenci de que concordar em partes é uma meia virtude dos mineiros), quero aproveitar esse espaço para desenvolver uma opinião provavelmente polêmica (como outras que os estimados leitores certamente encontrarão nessa coluna), e sem medo de pisar em ovos, ou já prevendo o omelete.

Que o avanço tecnológico é uma expressão da inventividade e da capacidade humana de resolver problemas práticos e tornar a vida melhor e menos sofrível, há muito tempo já tomamos como um truísmo. Celulares, máquinas de lavar, microcomputadores, fornos microondas, televisores de plasma, automóveis, etc. A lista é quase infinita desses maravilhosos... como se chamam mesmo? “Bens de consumo duráveis”! Exatamente, esses apetrechos que “vieram ao mundo” para facilitar e potencializar as mais diversas atividades humanas, poupando trabalho, esforço e até mesmo oferecendo alguma modalidade de alegria e alívio para aqueles corpos cansados e saturados que se despejam nos acolchoados e confortáveis sofás de sala televisiva nas tediosas tardes de domingo.

Por que não mencionar o quão relaxante deve ser por as mãos (e espera-se também que o resto do corpo, para que eu não seja tomado por esquartejador) naquele apreciado automóvel de estimação, comprado com tanto suor e economia, dividido em não sei quantas mil prestações, penhorando aquele velho anelzinho da vovó, ou pegando uma modesta grana emprestada com o simpático sogro (afinal, está ali aquele dinheiro guardado, sem uso, por que não tomá-lo para alguma coisa que nos vá trazer imediata satisfação?), enfim, operando os mais diversos malabarismos financeiros, e sair triunfante da garagem com o tão desejável veículo automotivo sobre quatro rodas, dando um belo passeio de domingo pelas ruas de Caratinga. E se o veículo possuir equipamento de som de admirável potência, então, imagina só, a alegria itinerante contagiando as ruas, oferecendo a cada transeunte e vizinho uma mostra do nosso apuradíssimo gosto musical, além de demonstrar publicamente nosso transbordante espírito solidário ao compartilhar com todos um pouquinho, ainda que de passagem, daquilo que nos é tão íntimo: a nossa música preferida! O que haveria de errado nisso?

Aparentemente nada. Em uma virtual sociedade de indivíduos-monarcas, onde cada um é absoluto senhor de si e do mundo ao seu redor, não há nada de errado. Mas pensemos um pouco. Só um pouco, se não for pedir demais nos tempos de hoje. Nessa cidade de aproximadamente 90 mil habitantes... retomemos a citada imagem da bela e entediante tarde de domingo, como aquelas vivenciadas pela maioria daqueles que trabalham e/ou estudam conduzidos pela rotina (outro desses nomes supostamente “neutros” para não dizer coação econômica) onde TODOS os seus moradores, supostamente beneficiados pela queda da taxa de juros, pelo aumento do nível de emprego, pelas facilidades de crédito na praça, pelo barateamento dos bens de consumo duráveis promovido por uma exitosa economia industrial de escala, etc, etc, imaginemos que TODOS eles resolvam fazer seu passeio de domingo nessa mesma tarde, assim, digamos, depois do almoço, e de preferência nos felicitando mui alegremente com uma pequena amostra ambulante das suas mais recentes aquisições musicais.

Parece brincadeira, certo? Alguns chamam de “probabilidade”, outros de “conjectura”, mas pouco importa o nome. O fato é que isso é muito, muito sério. Tudo bem, alguns podem me censurar pela caricatura, e então posso confessar que pequei pelo exagero. Esqueçam esse papo de “TODOS eles”. Pensem só em 10%, só em 10 mil veículos circulando nessa tarde imaginária de domingo...

Até agora, talvez para alguns, talvez para muitos, isso pode beirar a mera reclamação de gente velha, coisa de “gente idosa”, incapaz de se adaptar às dinâmicas dos novos tempos, e aceitar as experimentações da juventude. No entanto não posso deixar de perguntar: e quais são as experimentações de uma certa juventude caratinguense, para além dos desfiles automotivos de domingo, geralmente uma metamorfose dos jogos masculinos de sedução, da esquizofrenia do complexo de pavão?

Podemos apontar que essa não é uma característica isolada de Caratinga, mas sim de muitas cidades do interior do país que estão vivendo um período de “complexificação dos padrões de consumo de classe média”, derivado, entre outras coisas, do processo de estabilização econômica. Claro que as opções de consumo são necessariamente “estimuladas” pela ação ininterrupta dos escritórios de propaganda e marketing dos generais e bispos da indústria automobilística, principais responsáveis pela conversão do automóvel em um objeto de culto social, um verdadeiro fetiche contemporâneo, e em nossa cultura interiorana, lamentavelmente associado aos rituais de passagem para a maioridade.

Se a crítica cultural parecer insuficiente aos olhos de muitos dos atuais amantes dos motores, na crista da onda do argumento de que “gosto não se discute”, e se um gosta de andar a pé, outro de bicicleta, e outro de carro, logo “cada macaco no seu galho” e estamos conversados, gostaria de trazer argumentos de outra natureza.

Indago: qual o custo de produção de um automóvel? E não me refiro ao cálculo econômico ingênuo que vai buscá-lo em insumos, força de trabalho, etc. Pois nessa dimensão abstrata duas coisas estão fatalmente ocultas: a exploração do homem e a exploração da natureza.

A cadeia de produção de um automóvel está globalmente articulada, e implicada num grau elevado de interdependência de conhecimentos, trabalho e matérias-primas oriundas de várias partes do mundo. Beabá da globalização. Porém, eis o lado oculto da lua que não se mostra: nessa rede de interdependências estão incluídos desde o papel das miseráveis crianças do Zimbabué, da Bolívia ou... do Brasil, que “auxiliam” seus famélicos pais na extração de minérios em campos e montanhas convertidos em verdadeiras catacumbas, ao conjunto de guerras entre nações pelo controle geopolítico de fontes de energias não renováveis, como o petróleo, até a construção neokeynesiana de estradas como política pública de um país para promover o “rodoviarismo” (ou seja, o consumo em massas de automóveis), em detrimento da promoção de certas potencialidades naturais para o desenvolvimento de meios de transportes públicos, coletivos e sustentáveis. Uma lista rigorosa desse verdadeiro (e invisível) inventário dos custos de produção de um automóvel se perderia de vista se prosseguíssemos, e certamente geraria naqueles espíritos mais sensíveis uma estranha repugnância ao conduzir um carro novamente.

Contudo não é esse o meu o objetivo, pelo menos em parte. Estamos saturados em ouvir falar de aquecimento global e catástrofes ecológicas de toda sorte. Só hesitamos em fazer a conexão entre essas catástrofes que, não nos iludamos, está sim no horizonte, e nossos modos de vida, ou o que é o mesmo, mas em outra dimensão: a nossa própria matriz civilizacional capitalista. E não tenham dúvidas. Nosso modelo de transportes baseado no uso individual do automóvel é sim nefasto para as cidades, para os trabalhadores (especialmente aqueles inseridos nas esferas “invisíveis” que citei) e para o meio ambiente. É uma forma sutil e irresponsável de praticar um verdadeiro suicídio coletivo (na medida em que somos cúmplices) ou assassinato generalizado (no caso da maioria da população do planeta que não pode consumir esse tipo de bem).

Sinceramente, não vejo uma solução fácil e imediata para esse problema, e isso é terrível. As pessoas não parecem interessadas em abandonar esse modelo privatista de transporte, as empresas jamais abrirão mão de seus lucros, e os governos e os partidos são insensíveis para tudo aquilo que coloque em risco o “crescimento” das grandes empresas que os patrocinam. A tragédia é que, se não encontrarmos em breve uma solução coletiva para o problema do automóvel, não é só os engarrafamentos e o duvidoso gosto musical dos motoristas mais exibidos que teremos que suportar, mas progressivamente, o surgimento de impedimentos irreversíveis para continuidade da própria vida (e não somente humana) em nosso planeta. Aí já não poderemos falar mais nem em corda, nem em casa, nem em forca...

Um comentário:

  1. a cidade inteira parou. nenhum carro podia se mover mais. todos estavam presos para sempre no trânsito. surreal? (saramago)

    "esquizofrenia do complexo de pavão" é ótimo.

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