terça-feira, 13 de abril de 2010

Reflexões Natalinas





Incrível. Caratinga é uma cidade que sempre me surpreende. Toda vez que desço da rodoviária e sigo minha caminhada noturna rumo ao mais próximo do que posso chamar de casa (ou seja, a casa de um amigo) vejo, ouço ou simplesmente farejo algo que me espanta. Aliás, esse espantar-se, segundo alguns doutos da filosofia, estaria na raiz do que se poderia considerar “o pensamento reflexivo” ou “crítico” ou “transcendental” ou ... ou alguma outra coisa do gênero. Pouco importa. O que me interessa agora é compartilhar com os leitores meu último estado de espanto: a decoração natalina espalhada pela cidade, ou mais particularmente, pela praça das palmeiras e o calçadão do poder (sim, ali onde estão alocadas algumas secretárias da prefeitura municipal).

Vocês obviamente podem (e devem!) me questionar: afinal, o que esse camarada estúpido tem contra a celebração do natal? Essa data tão maravilhosa, quando todos se colocam mais amáveis no cotidiano, onde famílias que durante os 354 dias do ano não ou mal se falam, prontamente demontram aquele afetuoso abraço e toda aquelas saudações amorosas e melosas que antecedem a celebração da ceia e a abertura dos presentes em torno da... lareira? Obs... não, não estamos nos EUA ou na Dinamarca, não dá pra ter lareiras por aqui, verdade? Bem, esqueçam as lareiras. Mas sim, tem aquele sujeito adiposo de bochechas rosadas, vestido de vermelho com coisas brancas de pele de algum pobre animal ártico (sim, porque o bicho vem do norte!) em volta do pescoço, dos braços e das cintura (cadê o Greenpeace?!), carregando um saco enorme com um montão de buginganças de última geração da indústria micro-eletrônica chinesa, e distribui generosamente suas dádivas ao redor de um pinheiro enfeitado com estrelas e bolas luminosas (árvore essa, aliás, muito comum por nossas terras, né...) para que todos possam regojizar-se de felicidade! Só mesmo louco para colocar-se contra um espírito de tão inacusável altruísmo como esse tal do Sr. Noel... Só louco mesmo.

Então deixemos o Sr. Noel em paz, para que todos aqueles que se divirtam com sua presença possam se festejar e disfrutar tão importante data. Não preciso lembrar para ninguém que o Natal continua não sendo mais que uma data comercial, celebrada com especial furor pelo departamento de marketing de qualquer empresa que se preze e espera um substantivo aumento de seu faturamento nessa data do ano. Não preciso lembrar do apelo consumista, dos falseamentos em torno dos sentimentos de amor, amizade, paz, etc, tudo em prol das dinâmicas do mercado capitalista. Nem preciso lembrar também que esse duende (sim, o Sr. Noel é um duende, o chefe deles, mas um duente, alguém ainda duvida?) se originou em uma parte muito específica do mundo, foi apropriado por uma grande empresa de refrigerantes (nada contra a coca-cola, eu ainda recomendo aquela garrafinha de vidro, de 290 ml, bem gelada! É quase mágica!), e depois vendido como ícone comercial por boa parte do mundo colonizado cultural e economicamente, atropelando, massacrando e estimulando o processo de esquecimento de muitas tradições populares de países como o nosso (alguém ainda se lembra do maior dos nossos “duendes”, o Saci?). A fórmula é simples: cria-se uma indústria da propaganda e do cinema, elabora-se figuras e ícones associados a essa indústria, transforme-os em ícones de apelo universal e bingo! O Sr. Noel e tantos outros, se trasformam em verdadeiros patrimônios da humanidade, obviamente de uma única humanidade, a deles, a do Império. No entanto já disse, não vou lembrar vocês dessas coisas, pois os senhores e as senhoras já são suficientemente crescidinhos para desconfiarem dessas coisas...

Também não vou me estender na dimensão religiosa da festividade, legítima para todos os que se consideram cristãos. Só assinalo o aspecto mais curioso dela: Cristo nasceu numa manjedoura, no meio de cavalos, jegues e vacas com seus respectivos punhados de carrapatos e todo aquele fedor de esterco. Se existe algo que a instituição igreja esqueceu, assim como os católicos romanos, foi a valiosa dimensão de simplicidade que o natal deveria remeter...

E retomo o tom do meu espanto, espanto que me tocou ao descer da rodoviária e ver as palmeiras dessa cidade, essas grandes e imponentes palmeiras que muitos defendem como um verdadeiro símbolo pátrio municipal, vergonhosamente encapadas, como se estivessem semi-revestidas com um preservativo de mau gosto, para fazer jus a essa harmoniosa sincronia natalina. Mas o pior não foi isso, vê-las violadas naquilo que elas ainda pudessem conservar de sua dignidade arbórea e vegetal. Não. O pior é saber que essa brincadeira foi maquinada e planejada de um lugar onde supostamente se crê, as pessoas não deveriam estar de brincadeira: a prefeitura municipal de Caratinga.

Num período tão particular como o nosso, onde geralmente os meios de comunicação (jornais, televisão, rádio) ou se posicionam favorável ou contra as medidas do poder público na medida em que são contemplados ou não com recursos e vantagens desse mesmo poder, fica complicado encontrar algum raio de opinião crítica, até mesmo da parte de quem apoia governos supostamente auto-identificados como populares ou de esquerda. Portanto nomeio esse meu boi, para que vocês possam me entender: não apoio nem tenho interesse em apoiar nenhum tipo de governo ou partido. Minha preocupação é apoiar ou estar junto com pessoas interessadas em “ativar a esfera pública” (parece até nome de arma high-tech de seriado japonês) e tornar qualquer espécie de governo (que por si só são nefastos, porque sempre onde existe governo, existe quem é governado) em auto-governo, ou seja, em governo controlado pelos cidadãos e suas associações cívicas e comunitárias. Porque o governo deveria ser aquele organismo da sociedade que “serve” ao povo ou aos cidadãos. Nada mais que funcionários, empregados do povo, e não nenhum diabo de autoridade que se pensa e se crê acima da população como instância especial para definir o que é certo ou errado, o que é normal ou desviante. Um grupo de indígenas no sul do México criaram um ditado para isso: que aqueles que mandem, “mandem obedecendo”. Isso sim é democracia, poder popular, o resto, oligarquia burocratizada que governa segundo seus próprios interesses, travestido daquilo que supõe ser o interesse popular. E o pior é que nesse mundo confuso, de tantas referências perdidas ou derrotadas, tem um montão de gente por aí posando de esquerda e progressista...

Caros cidadãos e cidadãs dessa pacata e nem tão inocente cidade: alguém em algum momento foi consultado sobre essa ornamentação natalina? Alguém sabe quanto foi gasto com isso, do orçamento público? Isso sim é o mais espantoso, numa cidade cheia de problemas e prioridades... O próprio jardim das palmeiras mesmo, que foi recentemente vítima de uma atitude ecocida por parte de um antigo secretário que, talvez acordando entediado em uma dessas entediadas e remelosas manhãs que configuram sua vida, arbitrariamente decidiu cortar algumas árvores sem muita importância, como quem corta grama... Lamentavelmente tal secretário, como me imagino, até muita gente que está dentro da prefeitura, não deve ter nem idéia de que “cortar grama” é uma verdadeira ciência, que seu executor, o tal do jardineiro, quando é bom, tem não só conhecimento de causa, mas sensibilidade suficiente para, partindo das próprias condições particulares de um terreno e do ecossistema ao redor, criar verdadeiras obras de arte. Porque então esse dinheiro não foi usado para isso, capacitar os jardineiros para transformar nossa praça em um maravilhoso e babilônico jardim modelo? Até mais, se em lugar dessa ornamentação descartável (sim, porque é para o lixo que toda essa parafernália deve ir, passado o natal...), era preferível até fazer sopa e distribuir aos pobres nessas noites frias e chuvosas.

Mas nossos gestores não tem nem essa sensibilidade espírita da caridade, nem são consequentes democratas, ainda que tragam consigo todo esse lenga-lenga da participação que nasceu junto com o PT (e não com ele, atenção!), e que claramente se perdeu na lógica instrumental e imediatista das dinâmicas do poder e do calendário eleitoral. Superfaturam notas de compra de terrenos, censuram filmes locais, cortam árvores que estão no meio do caminho (porque se fossem pedras, teriam que chamar o Drummond para resolver), etc, etc. E vão continuar fazendo essas coisas, à esquerda ou à direita, se a população de Caratinga não reivindicar aquilo que é dela e que é exercido em seu nome: o poder político.

Infelizmente (e para a insônia dos tecnocratas) democracia só se aprende fazendo, praticando democracia. Não tem cartilha. Ou o povo participa e toma assento nas decisões e nos processos de fiscalização das decisões, ou vira gado. E para gado, já tem um montão de boiadeiros e cowboys aí fora esperando para montar.

Há um outro ditado, escrito nas paredes dos banheiros de rodoviária de Buenos Aires, Argentina, que especula algo mais ou menos assim: “uma torta é boa quando feita de farinha bem batida e amassada”... Será que nos falta um um pouco dessa sabedoria culinária para criarmos uma nova cultura política, democrática de fato? Quem sabe... Enquanto isso, nos pagamos a conta e os ingredientes e ficamos aqui, atrás das urnas, observando os políticos se lambuzarem com a nossa torta...

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